sexta-feira, 10 de abril de 2009

ANDAR COM FÉ


São Paulo, 4 de abril de 2009.
Hoje foi um dia puxado, pleno sabado e eu queria ficar em casa para descansar, mas precisei ir trabalhar. Para minha sorte, o que eu faço me envolve de tal maneira que eu não vejo o tempo passar, então quando chego lá meu mau humor não passa do “bom dia” que digo e recebo, as vezes tem comentarios, as vezes me olham como quem diz “ nossa, que cara é essa” por causa do sono mas logo eu disperto de verdade. Fiz até um pouco a mais do meu horario para aguardar uma colega da minha equipe, fui pra casa pensando na minha cama, mas pelo horario que cheguei tive que me contentar com as cochiladas no caminho enquanto estava no onibus e trem, cheguei e já tive que tomar um banho para despertar, comi alguma coisa e sai de novo e a historia que realmente gostaria de compartilhar começa no meu trajeto para o ensaio. Fui para a estação e enquanto aguardava o trem terminava de me arrumar com maquiagem, entrei torcendo para ter um lugar para me sentar porque não consegui terminar, me sentei atras de passageiros que conversavam, meu mp4 não carregou direito então fiquei só uns 2 minutos ouvindo musica, fui obrigada a ouvir a conversa do homem, não sabia se era mais velho ou mais novo que eu, que falava com um sutaque do nordeste, eu tentava me não dar atenção a conversa mas ela me prendeu, então em menos de 30 minutos de viagem ele contou o sofrimento que estava vivendo naquele momento. Ele dizia que chegava bem cedo na estação e ficava pedindo para as pessoas passa-lo na catraca ou pedindo dinheiro para comprar a passagem, com o cracha pendurado no pescoço para o pessoal ver que realmente estava indo trabalhar, chegava cedo e até hoje conseguiu, mas teve uma vez que chegou atrasado e chamaram sua atenção, ele até justificou, disse para seu chefe o que ocorria, pedia para pagar o vale transporte, mas o vale trasporte só vem na terça-feira, e ainda vem adiantado porque ele não tem nem 10 dias trabalhando na empresa. Diz que veio do Ceará com suas filhas (3, todas pequenas e 2 de colo), e tudo indica que foi abandonado pela mãe das meninas, porque deixa suas filhas como uma velha, mas a “veia” reclama muito porque a mais novinha vive chorando de fome, e ele não tem o que dar de comer para elas, ultimamente fez uma mistura de farinha com agua para ele e as meninas comerem, para beber faz chá, antes de sair deixa as 3 mamadeiras de chá pronta para dar as meninas. Hoje quase que ele vai trabalhar e leva as meninas porque foi uma briga para a “veia” ficar com elas, porque não aguenta mas o choro delas, e aí teria que voltar para traz porque os “homens” não iam deixa-lo trabalhar.
Conta os dias para voltar para o seu Ceara, pois lá sim, a gente é pobre mas divide as coisas, são pobres de barriga cheia, aqui em São Paulo as pessoas são ruins, ninguém esta nem aí para ninguém não. Outro dia estava pedindo dinheiro para ir trabalhar, mostrou o cracha para um homem e esse homem jogou o cracha dele no chão: “ah, mas ele foi xingado de tudo quato é nome até umas horas, pra larga a mão de fazer isso, não quer dar dinheiro não dá, num precisa fazer uma coisa dessa”.
Logo que chegou do Ceará ficou uns dias embaixo da ponte poque não tinha para onde ir, quer muito voltar para o Ceará porque lá tinha sua rocinha e se virava com as crianças, “devia de ter ouvido meus pais para não vir, mas eu só queria melhorar a vida e vim pra viver isso que estou vivendo agora, tem horas que da vontade de roubar pra dar o que comer as minhas filhas, e o pior que nem o que comer eu tenho. Ontem estava na hora da janta, a gente janta meia noite e lá é todo mundo ruim, ninguem da nada pra ninguém, não oferecem pros outros, e eu morrendo de fome, vi um cara jogando resto de comida no lixo, daí fui lá e catei, fiquei comendo, mas dei azar porque bem nessa hora tava passando um encarregado, ele ficou olhando pra mim mas eu continuei comendo, tava com fome, pois ele me chamou pra conversar, disse que não podia fazer aquilo porque era lugar de trabalho e na proxima vez que eu fizesse isso seria mandado embora, então eu levei uma advertencia tive que assinar o papel, eu disse pra ele que estava com fome e eles deveria me dar o vale alimentação, mas na terça-feira me falaram que eu ia receber o vale tranporte e alimentação. Até discutiram pra me mandar embora porque achavam que eu não tinha condições de trabalhar porque não tinha o que comer, eu disse que deveriam deixar eu trabalhar sim porque aí que eu não iria ter o que comer mesmo”.
A mulher com quem ele conversava pergutou onde ele trabalhava, ele mostrou o cracha e disse, nas estações, eu “barro o chão, passo pano, agora me deram um servicinho triste de fazer que é tirar chicrete do chão, ô servicinho chato de fazer, mas eu tô la e me deram 65 dias para eu tirar o dinheiro das passagens e ir me imbora com as meninas para o Ceará”. Agora estou morando em Suzano, disse o endereço, fica perto ali do campo cacique, é um campo de futebol”. A mulher comovida, aconselharva ele a não fazer besteira e dizia que vai dar tudo certo, deu seu telefone ao homem, disse que ia arrumar uma cesta basica para ele, então o homem guardou e disse eu não conheço São Paulo mas a “véia” conhece tudo, “nois acha onde é a sua casa e vai buscar sim”.
Já chegando na estação onde eu ia saltar, fiquei pensando o que poderia fazer, se eu conversava com ele, se ia embora, mas algo fez esse homem descer nessa mesma estação, eu quase indo embora mas passei ao lado dele e finalmente o vi, um homem mais baixo que eu, muito magro, com aspecto muito sofrido no rosto, uma pele morena, cabelos grisalhos, andava cambaleando e de vagar, tinha os olhos vermelhos, mas não tinha cheiro de pinga nem de cigarro e estava com o seu cracha pendurado no pescoço. Eu o abordei e disse que ouvi tudo o que ele contava para outra mulher, pedi desculpas por ouvir a conversa e logo perguntei se ele havia comigo alguma coisa, ele mal raciocinava, no momento que levantou-se ficou um pouco tonto e eu deduzo que seja a fome, mas ele balançou a cabeça de um lado para outro e disse, “não estou me aguentando nem falar direito”, eu pedi para que ele me acompanhasse até alguma lanchonete para eu lhe oferecer alguma coisa para comer, e ele me acompanhou. Naquele momento eu não estava com dinheiro em especie, então só poderia pagar com cartão de vale alimentação ou cartão de debito, perguntamos em dois estabelecimento e chegamos em outro que finalmente aceitava, e ele percebendo o tratamento, “aquele ali nem te respondeu direito”, como quem diz ' isso é jeito de tratar um cliente', perguntei: o que vai matar a sua fome aqui, ele disse “um prato de comida”, eu disse que não havia em canto algum por ali que precisava ser o que tinha, “o que você quiser me dar eu aceito”, então peguei um x- burguer, coca cola e uma lasanha e disse apontando para o ultimo, esse aqui você deixa para mais tarde, pra hora de seu jantar, ele respondeu que sim com a cabeça mas estava muito ocupado devorando o amburguer com muito gosto. Olhei umas caixas de leite numa prateleira atras da loja, era a dispensa, ao lado tinha café, açucar e perguntei se estava para vender também, a moça disse que não, que era a dispensa, eu pedi e insisti para que ela me vendesse pelo menos uma caixa de leite para o homem levar para suas filhas, ela pediu para a gerente mas a resposta foi não, e de novo ele comentou “ aqui o povo é ruim mesmo, ela ainda te atendeu melhor que os outros, mas aqui é todo mundo muito ruim”. Pedi seu endereço mas não prometi nada, pedi que tivesse esperança porque tudo vai dar certo, existem pessoas boas que irão ajuda-lo, mas parecia que ele não me ouvia, ele me deu seu endereço, me despedi, disse de novo para não fazer besteira e ter esperança, ele agradeceu e eu fui embora. Enquanto eu estava com ele foram quase 15 minutos que me atrasaram para meu compromisso, mais os 30 minutos que ouvi sua historia dentro do trem, me deixaram muito pensativa por muito tempo, eu precisava contar para alguém com objetivo de me livrar um pouco do que estava sentindo, então contei para meu namorado logo depois que ele reclamou do meu atraso, ele ficou em silencio, ouviu cada palavra, concordou quando eu disse que poderiamos levar alguns mantimentos para ele, mas isso não foi suficiente para eu me livrar completamente dessa historia, antes não era um problema meu, mas se tornou, meu ensaio não rendeu muito, eu estava cansada e com a cabeça cheia, pedindo a Deus que coloque pessoas boas em seu caminho para não permitir que seja mais um alcolatra, um suicida, um bandido, um mendigo, que coloque a vendas suas filhas, que entre no mundo do trafico, por consequencia de seu sofrimento, por mais que não se justifica tais atitudes, um homem desesperado pode vender a sua dignidade, pode enlouquecer, pode fazer qualquer coisa por não aguentar a dor e o sofrimento, numa situação como esta que ele vive nem todos sobreviveriam e o que é pior é que não se sabe como será amanhã, ele pode acordar com a sorte de encontrar pessoas dispostas a ajudar ou pode cair de fome e fraqueza e tristeza por não ter um pão para dar a suas filhas.
Alguém pode até pensar que toda essa historia é mentira, sinceramente eu pensei no começo, mas senti que não era, em momento algum ele me pediu dinheiro, não fedia cachaça nem cigarro, as vezes repetia o que já havia contado, eu senti que era verdade e o pior que isso me fez perceber que existem muitas pessoas nessa situação. Talvez as pessoas podem até pensar que mesmo numa situação como esta, existe gente que se aproveita da bondade dos outros e vive de caridade, mesmo assim, penso que cada um tem seus direitos e deveres e uma questão ética e moral que é a de ajudar alguém que precisa, eu fiz um pouquinho e queria sair satisfeita dessa historia, não consegui, só fiquei pensando que poderia fazer mais, mas sozinha eu não posso.
O nome dele é Edson, ele mora na rua Afonso Shimiti (foi o que consegui entender), numero 330, perto do campo de futebol Cacique, no Jardim Colorado, Suzano, São Paulo. Segundo ele não fica perto da estação, dá uma hora caminhando.
Até quando a fé de um homem desse durará??

Nenhum comentário:

Postar um comentário